Por Aline Akemi Freitas, sócia do CQS;
e Flavia Ferraciolli Manso, Advogada do CQS
É de conhecimento público que o setor cultural foi, juntamente com outros, um dos primeiros a serem atingidos pelos cancelamentos decorrentes da COVID-19. Foram incontáveis os eventos internacionais cancelados. Shows, feiras, festivais, museus e até cinemas foram fechados para evitar grandes aglomerações. A recomendação de paralisação dos projetos que envolvam a participação do público em geral veio, inicialmente, de orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), e foi seguida pelos diversos Estados e Municípios brasileiros, como medida preventiva à propagação da doença.
Em razão disso, a Secretaria Especial da Cultura, comandada pela atriz Regina Duarte, se colocou à disposição para auxiliar o setor cultural quanto ao cenário de atenção e cancelamentos do Coronavírus, e divulgou em 16/03/2020, uma nota com orientações aos produtores culturais responsáveis por projetos realizados com recursos provenientes da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
Passados mais de 20 dias da nota emitida pela Secretaria Especial da Cultura, voltada “sobretudo aos projetos culturais, que têm recursos provenientes da Lei de Incentivo à Cultura”, não foi adotada nenhuma medida prática com orientações diretas aos proponentes, nesta excepcional situação.
Em nota, a Secretaria orienta:
“As ações que sofrerem impactos em razão do Covid-19 e das diretrizes de estados e municípios devem ser devidamente documentadas, fundamentadas e ajustadas sempre que possível para que danos e efeitos possam ser mitigados, observando-se as especificidades de cada expressão cultural. A fundamentação e documentação devem ser incluídas no material que evidencie a restrição da execução do projeto, tal qual o aprovado. Para o ajuste necessário, a orientação é seguir as diretrizes de acessibilidade e democratização de acesso previstas na Instrução Normativa em vigor”.
Para a surpresa de muitos, que, acompanhando as orientações, comunicaram a Secretaria sobre a paralisação ou ajustes em seus projetos, a devolutiva recebida veio na contramão, não só da nota emitida, mas de todas as medidas que têm sido adotadas no país. A resposta da Secretaria aos pedidos de ajustes de projetos tem acontecido no seguinte sentido:
“Informo que este Órgão não publicou, até a presente data, nenhum ato acerca de alterações na execução dos projetos culturais em razão do Covid19. Assim, informo que os projetos devem continuar sendo executados em conformidade com o que estabelece a Instrução Normativa n. 02, de 23 de abril de 2019. Isso posto, caso seja necessário realizar alterações no projeto pelo atual cenário, orientamos que solicite por meio do campo ‘Readequação’, com a devida justificativa“. (Grifo nosso)
Como seguir executando projetos que atendem crianças, jovens, adultos e idosos, normalmente em aglomerações, para usar a palavra que melhor se aplica ao momento, em escolas, teatros, museus, se a orientação é de isolamento social? Se todos estes espaços estão fechados por atos do Poder Público?
Importante esclarecer que a solicitação de alterações pelo campo “Readequação”, como sugere a Secretaria, tem impactos para os projetos, já que essas mudanças, quando orçamentárias, só podem ser solicitadas uma única vez. Assim, se o responsável pelo projeto pede eventuais ajustes neste momento, como reajustar quando a situação voltar ao normal?
Além de ajustes na própria execução dos projetos (já que alguns podem, por exemplo, ser realizados por meio de transmissão online ou outros meios possíveis com o isolamento social), muitas são as dúvidas sobre a possibilidade de pagamento de fornecedores já contratados que tiveram seus trabalhos suspensos. Em alguns casos os contratos preveem serviços e, portanto, pagamentos contínuos/mensais. Para os contratos cujos pagamentos vêm de recursos privados há maior liberdade de negociação com fornecedores, o que não acontece, necessariamente, quando estamos falando de pagamento com recursos públicos.
No entanto, uma das questões que mais têm sido objeto de apreensão dos produtores e instituições que possuem recursos na conta dos projetos, diz respeito ao pagamento da folha, isto é, do pessoal contratado para realização das atividades. Essa demanda ficou ainda mais latente com a virada do mês e o prazo para pagamento dos salários. Vale dizer que a legislação trabalhista não é orientada pela natureza do recurso, o que significa que os produtores e as instituições deverão cumprir com seus deveres, como qualquer outro empregador.
Algumas instituições colocaram seus funcionários em férias, mas ainda assim pairam as dúvidas: é possível pagar os encargos e benefícios dos projetos uma vez que esses estão suspensos ou paralisados? É possível pagar o salário daqueles que não estão de férias? Caso não seja, essa decisão não se tornaria contrária aos esforços do próprio Governo Federal de não criar uma massa de desempregados?
Com tantas incertezas que pairam nesse momento, o ideal seria que a Secretaria Especial de Cultura já tivesse publicado ato normativo que trouxesse segurança para os diversos produtores e instituições que utilizam leis de incentivo. Essa insegurança poderá custar o dobro para os que gerem esses recursos, pois correm o risco de ter que devolver esses valores para os cofres públicos no futuro, por falta de orientação do órgão.
A normatização é, inclusive, a recomendação da Resolução Conjunta das entidades ligadas aos tribunais de contas (ATRICON[1]/ABRACOM[2]/ AUDICON[3]/ CNPTC[4]/ IRB[5]) nº 1, de 27 de março de 2020, a qual prevê que como recomendação às cortes de contas que:
“Art. 2º O desempenho dos papéis de fiscalização e controle deve ser continuado, adotando-se a cautela, a coerência e a adequação ao contexto da crise, preferencialmente de forma pedagógica, com a implementação, entre outras, das seguintes medidas: (…)
XVIII – incentivar a publicação dos atos excepcionais, para evitar questionamentos futuros; (…)”
Percebe-se, com isso, que as próprias cortes de contas estão preocupadas com a edição de atos excepcionais, para trazer segurança jurídica aos cidadãos e jurisdicionados.
Há informações de que a normativa da Secretaria Especial de Cultura saia na próxima semana. Resta saber se isso se confirmará e quão completa ela virá, já que diante das dificuldades impostas, ela parece já vir atrasada.
[1] ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL – ATRICON
[2] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS – ABRACOM
[3] ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MINISTROS E CONSELHEIROS-SUBSTITUTOS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS – AUDICON
[4] CONSELHO NACIONAL DE PRESIDENTES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS – CNPTC
[5] INSTITUTO RUI BARBOSA – IRB