Via Revista CULT.
Proposta de show flutuante retoma o debate do incentivo fiscal na cultura.
por Eric Campi.
Antes do afastamento de Dilma Rousseff, o financiamento através da Lei Rouanet foi alvo constante de críticas pela oposição, que sustentava a ideia de que o apoio de determinados artistas à presidente só se dava por causa do incentivo fiscal que eles recebiam da lei. Essas críticas circularam em discussões nas redes sociais e nos comentários de blogs e jornais on-line. Alguns mecanismos da Rouanet foram revistos, numa tentativa de barrar a concessão a grupos que poderiam promover seus eventos sem a ajuda do dinheiro público.
Em 2013, a empresa Rock World captou cerca de R$ 12 milhões através do Rock In Rio, o que acarretou, em fevereiro de 2016, a decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) de proibir a captação de recursos da Rouanet para projetos com potencial lucrativo. No dia 9 de junho, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic) não aprovou outro projeto da Rock World, o Amazônia Live. O evento consistiria no show do tenor Plácido Domingo em um palco flutuante montado no rio Negro, em Manaus. Aberto apenas para 200 jornalistas, a apresentação seria transmitida por meio do canal pago Multishow e de telões espalhados pelas ruas do município amazonense.
Uma das condições para ser aprovado pela Rouanet, que permite aos possíveis patrocinadores dedução no Imposto de Renda, é que o evento seja aberto ao público. Um evento fechado, como o Amazônia Live, portanto, “não poderia usar o incentivo”, afirma o presidente da Comissão de Mídia e Entretenimento do Instituto dos Advogados de São Paulo e membro da Comissão de Direito às Artes da OAB-SP, Fabio de Sá Cesnik. Para ele, “o projeto foi lançado na perspectiva de um show que não abriria ao público, portanto viola o regimento da lei, que define que o evento deve ser gratuito ou libere a venda de ingressos”. A empresa se justificou afirmando que as transmissões pela TV fechada alcançariam milhões de pessoas, mas, pela lei, apenas transmissões em redes públicas devem ser aprovadas. “Não haveria problema se o projeto fosse apresentado como uma produção audiovisual”, garante Fabio, mas nesse caso não receberia o abatimento de 100% dos custos, como é o caso de um show.
Considerando que a produtora do Rock In Rio obteve financiamento aprovado em três edições, 2011, 2013 e 2015 (desistindo nesta última para cobrar um valor pelos ingressos maior do que o permitido por lei), fica evidente o benefício para “consagrados”, fato denunciado pelo Ministro do Governo Dilma, Juca Ferreira, ao jornal O Globo em fevereiro deste ano: “Os beneficiados são sempre os mesmos. Esses já estão inseridos no sistema. Não tenho nada contra os consagrados. Fazem arte de qualidade e é sinal que são bem aceitos, mas a distribuição (dos benefícios) tem que respeitar o interesse público”.
Mesmo com as novas decisões do TCU, a Rouanet ainda apresenta elementos que permitem distorções. Em 2013, a então Ministra da Cultura, Marta Suplicy, autorizou o uso de recursos da Lei para um desfile de grifes brasileiras em Paris, previamente recusado pela Cnic. Um desfile como esse também não é aberto ao público, mas, em nota, Marta defendeu que “o Brasil luta há muito tempo para se introduzir e ter uma imagem forte na moda internacional. Essa oportunidade tem como consequência o incremento das confecções e gera empregos. E é um extraordinário ‘soft power’ no imaginário de um Brasil glamouroso e atraente”.
Portanto, a noção de “interesse público” não é objetiva o bastante para se sustentar como um bom critério para a licença de captação através da Lei Rouanet. O show flutuante no Amazônia Live, defendido pela Rock World como uma forma de chamar a atenção internacionalmente para a causa da devastação da floresta, equivale aos argumentos da imagem brasileira no exterior, dados pela ex-ministra. “O interesse público é um princípio do direito administrativo. Ele permite a criação de empregos, a promoção de espetáculos para a população e o incentivo da cultura brasileira”, explica Cesnik, “a questão de ambos os casos (Amazônia Live e o desfile em Paris) é que não cumprem o objetivo de garantir o acesso da população”.
Ainda que a decisão de negar o investimento para a Rock World seja acertada na visão do advogado, resta à Comissão Nacional de Incentivo à Cultura definir critérios mais específicos e, portanto, mais efetivos, para a definição de quais projetos devam, ou não, ser aprovados pela Lei Rouanet. “A Lei não é o Bolsa-Família da Cultura, não se calcula a possibilidade de uma empresa investir no próprio evento, mas ela precisa garantir o incentivo econômico à cultura em geral”, defende.
Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/06/o-respeito-ao-interesse-publico/