Nos últimos meses, a Lei Rouanet esteve em evidência: de CPI, instalada em setembro, até operação Boca Livre, da Polícia Federal, com sua segunda fase deflagrada em outubro.
O objetivo tem sido apurar supostas irregularidades na execução de projetos que usam esse mecanismo.
A ação da PF, da Câmara dos Deputados e de outros órgãos é louvável e necessária para coibir desvios e aprimorar os mecanismos de fomento no Brasil. No entanto, é importante uma análise detida antes de condenarmos a lei.
A investigação da PF foi uma demanda do Ministério da Cultura (MinC), que já havia apurado possíveis desvios da produtora investigada e instaurado tomadas de contas especial. A governança do mecanismo funcionou.
A CPI se iniciou por razões mais políticas e ganhou força com a investigação da PF, que ocorre paralelamente.
Para auxiliar esse debate, alguns apontamentos são importantes. Há de fato um uso incorreto generalizado da lei? Quais são os limites dos benefícios das empresas que financiam projetos culturais incentivados?
Do ponto de vista da PF, ficou bastante claro que houve uma atuação isolada (um único grupo cultural usuário da lei é objeto de investigação). Sobre a CPI, os deputados declaram em uníssono a importância estratégica da lei e pretendem, concluídos os trabalhos investigativos, propor mudanças construtivas.
Assim, problemas pontuais, que podem demandar revisão da legislação, não contaminam o mecanismo de incentivo à cultura em si, que tem viabilizado um conjunto de atividades relevantes.
Quanto aos patrocinadores, a lei prevê três naturezas de contrapartida: o benefício fiscal, a assinatura das peças de comunicação e até 10% dos produtos culturais do projeto.
A lei veda expressamente que o projeto seja um evento fechado (um casamento, por óbvio), mas não restringe a destinação, admitida em regulamento, de até 10% do produto do projeto para o patrocinador, desde que para distribuição gratuita.
Estabelecer que essa cota de ingressos seja concentrada em única data não viola a legislação. Via de regra, produtores negociam com patrocinadores que os seus convidados usem os ingressos em apresentação fora dos finais de semana, deixando as vagas dos dias mais nobres para o público em geral, aumentando a ocupação (e, portanto, a receita) dos espetáculos.
Além de não violar o interesse público, a liberdade de negociação colabora com o objetivo da lei de incentivar a produção cultural e fortalecer o segmento. Caso se entenda diferente, o MinC deverá editar norma específica, não retroagindo a regra.
As políticas de incentivo não retiram toda a autonomia dos particulares que recebem os benefícios, ainda que lhes imponha condições. Entender diferente significa equiparar a iniciativa privada ao próprio Estado, o que vai de encontro com os princípios do fomento.
A lei merece aprimoramentos no seu texto, como imaginamos que virá da CPI e da nova gestão do MinC, mas o seu controle tem sido até aqui muito criterioso e seu uso tem trazido resultados que beneficiam o conjunto da sociedade.
FABIO DE SÁ CESNIK, sócio do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados, é autor do livro “Guia de Incentivo à Cultura”
ALINE AKEMI FREITAS, sócia do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados, é autora do livro “Direito à Cultura e Terceiro Setor”