Via Estadão.
Por Aline Freitas, Fabio Cesnik e Gregory Becher.
Incongruências e polêmica sobre o tema dariam um excelente debate nacional
Foi sancionada em 29 de novembro a Lei 13.364, que eleva o rodeio, a vaquejada e as respectivas expressões artístico-culturais à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial. Consideram-se, ainda, patrimônio cultural imaterial do Brasil as expressões decorrentes, como montarias, provas de laço, apartação, bulldog, provas de rédeas, provas dos três tambores, team penning e work penning, paleteadas e outras provas típicas, como a queima do alho e o concurso do berrante, bem como apresentações folclóricas e de músicas de raiz.
Numa leitura isenta de qualquer valoração cultural subjetiva, o que é essencial, já que temos um país com uma grande diversidade cultural e todas elas devem ser respeitadas, algumas questões devem chamar a atenção da população sobre o tema.
Uma primeira observação a respeito do texto é que o assunto é objeto de lei federal, portanto, aprovada no âmbito das duas Casas Legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), com sanção presidencial e com a assinatura de um único ministro, o da Justiça (Alexandre de Moraes). Curioso uma lei que eleva os temas a manifestação da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial não tenha acompanhamento e assinatura do ministro da Cultura.
Uma segunda observação seria a de analisar os efeitos dessa declaração. A Lei Rouanet (Lei 8.313/91) considera as iniciativas de patrimônio cultural (artigo 25, VII) como enquadráveis para efeitos de benefícios fiscais, com um detalhe adicional: as ações de “preservação do patrimônio cultural material e imaterial” se enquadram no artigo 18 da referida lei, que permite às empresas a dedução de 100% do valor aplicado do Imposto de Renda em projetos desse tipo. Desde novembro estaria permitido um projeto de realização de um rodeio, por exemplo, com o enquadramento mais benéfico da Lei Rouanet (o outro enquadramento, do artigo 26, permite o abatimento parcial do valor aplicado).
Tal medida põe em xeque a decisão de fevereiro de 2016 do Tribunal de Contas da União (TCU), órgão ligado ao Poder Legislativo, que recomendou ao Ministério da Cultura a adoção de providências para revisão de benefícios aos projetos “com potencial lucrativo” ou de alto retorno econômico. O mesmo Legislativo aprova, então, uma lei ampliando benefícios para uma categoria de projetos altamente rentável (ou não teria forte potencial lucrativo a realização de um rodeio?).
Incrível que haja uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados questionando a Lei Rouanet e que grande parte da confusão sobre o uso de incentivo venha dessa profusão de leis que passam por nosso Legislativo, são corroboradas pelo Executivo e fazem mais confundir o setor e a população do que incentivar, de fato, as manifestações culturais.
Calma, não acabou: a terceira observação vem do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.983 do Supremo Tribunal Federal (STF), que em outubro de 2016 considerou inconstitucional a Lei 15.299/2013, do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado. Os ministros entenderam que há “crueldade intrínseca” aplicada aos animais, afirmando que o dever de proteção ao meio ambiente, previsto no artigo 225 da Constituição federal, se sobrepõe aos valores culturais da atividade desportiva. O ministro relator, Marco Aurélio Mello, afirmou que laudos constantes no processo demonstram consequências nocivas à saúde dos animais, bois e cavalos, como fraturas, ruptura de ligamentos, comprometimento da medula óssea e outros danos.
Ainda que profissionalizada, no entendimento da maioria dos ministros a prática oferece riscos aos animais. Assim, o STF entendeu que o termo “crueldade”, constante no inciso VII do parágrafo 1.º do artigo 225 da Constituição federal, equipara à tortura os maus-tratos impostos aos bois e cavalos durante a prática da vaquejada, sendo, portanto, “intolerável a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada”.
A vaquejada consiste numa competição em que vaqueiros montados a cavalo em duplas tentam derrubar um boi, puxando o animal pelo rabo, de forma a imobilizá-lo numa área demarcada do terreno. Entretanto, diferentemente do que era feito no passado (a prática teve início no século 18), os bovinos são hoje enclausurados, açoitados e instigados para que corram quando aberto o portão, causando danos psicológicos comparados à tortura, bem como danos físicos sérios quando estão na arena, visto que em velocidade são agarrados pelo rabo e torcidos até cair com as quatro patas para cima, para serem dominado pelos vaqueiros.
Existem três projetos de lei federal (6.298, 6372 e 6505, todos de 2016) que tratam da prática da vaquejada e visam, entre outras coisas, a proibir a crueldade com os animais, prevendo, além da responsabilização cível e criminal de quem os submete a tratamento cruel, a proibição de esporas e chicotes, o uso de protetor de rabo do boi, a proteção de camada fofa de areia e a presença de veterinário nos eventos. Serão suficientes essas medidas?
E agora? Temos uma boa polêmica estabelecida e pouco comentada pelos profissionais da área cultural até o presente momento, mas que daria um excelente debate nacional, diante das incongruências apresentadas. Precisamos, cada vez mais, que os Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – afinem sua comunicação, sob pena de ficarmos dando passos para trás.
*Advogados, são, respectivamente, mestre em direito do estado pela PUC-SP, autora do livro ‘Direito à Cultura e Terceiro Setor’; autor do livro ‘Guia de Incentivo à Cultura’ e presidente da comissão de mídia e entretenimento do IASP; e especialista em direito tributário pela FGV-SP